"words are poisoned darts of pleasure" FF

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

No pain, no gain

Todos desejamos pertencer. Não adianta, é instintivo. Até as pessoas que mais se sentem confortáveis com a solidão – e me incluo nesse grupo – necessitam e buscam adaptar-se, encontrar pontos de apoio, pessoas com quem se identifiquem, lugares que as façam sentir-se seguras. E isso não é novidade, eu sei. Muita calma, essa não é uma crônica piegas (não inteiramente, digo) e nem vou importuná-los com clichês (não muitos, pelo menos).


Acontece que algo muito engraçado – e alguns diriam um tanto trágico – me aconteceu essa semana e precisava ser documentado. A verdade é que, guardadas as proporções, se o mesmo tivesse ocorrido no Brasil, ali na Gávea, eu provavelmente teria apenas ficado muito puta e a história entraria no escopo daquelas que se conta para ilustrar um dia realmente fodido. Mas – e agora desculpem-se, pois aí vai outro clichê – é uma verdade que despimo-nos de nossas armaduras quando estamos longe de casa, em um lugar que nos é tão estranho. Não foi preciso mais do que 24 horas de viagem para que eu descobrisse isso. Admitir fraquezas e limitações é precisamente a primeira coisa que se deve fazer para conseguir passar por uma experiência como essa sem grandes solavancos. Precisei admitir que não sou boa com mapas, que sou fútil e carrego bagagem demais, que tenho vergonha de não saber o que são e onde ficam as coisas e, mais ainda, de perguntar o que são e onde ficam as coisas. Meu ponto com isso tudo é o seguinte: não adianta ficar putinha, chorar e se desesperar porque você viajou dez horas, pegou um trem, levou um esporro em francês da polícia porque estava “quicando” sua malinha de 34 quilos escada abaixo, pegou um metrô e, na saída deste, descobriu que não tinha escada rolante e você ia ter que carregar (desta vez escada acima) sua malinha de 34 quilos, seu mochilão de 15 e sua bolsinha de mão. É preciso muito senso de humor, calma e uma bela dose de humildade para pedir ajuda e captar a bigger picture da situação, sendo esta: estou na Europa e essa é a viagem da minha vida. Ou chora-se e liga-se para casa, mas não se deve queimar a carta “mamãe, socorro, preciso chorar no telefone” assim tão cedo.


Pois bem, aí vocês devem estar imaginando: ‘bem, se ela percebeu essas coisas assim tão depressa, o que pode ter dado tão errado mais de um mês depois da viagem começada e que mereceu virar uma crônica?’. É aí que a coisa começa a ficar divertida.


Quando preenchi meu formulário de acomodação, marquei todos os quadradinhos de maneira que fosse parar no dormitório mais bagunçado e baladeiro – sem necessidade para mais explicações. Foi o que aconteceu. Acontece que o dormitório bagunçado e baladeiro é também o mais distante da universidade (pergunto-me, inclusive, a título de curiosidade, se acaso os fatos não estão interligados). Nada de desesperador, dez minutos de ônibus fora do horário de pico, 30 na hora do rush. O lugar é bem isolado do centro da cidade, logo não se faz muita coisa à pé. O famigerado Bodington Hall fica na beira de uma highway que liga a cidade ao subúrbio, é gigantesco, cercado pelos gramados do centro de esportes da faculdade e tem uma recepção bem grande, com refeitório, lavanderia, lojinha e, claro, o tão estimado “Bod Bar”, cujo único defeito é fechar às 11:30 da noite. Dito isso, voltemos à sucessão de eventos que desemboca nessa crônica.


Eu estou malhando todos os dias, lá na universidade, depois das lectures e seminars. Organizo meu dia de modo que depois da academia, não me reste mais nenhum afazer acadêmico, para que eu possa então voltar direto para o dormitório. Isso porque o chuveiro daqui é uma delícia e, logo, não faria o menor sentido tomar banho num vestiário nojento e ter que carregar todos os artigos de toilette comigo.


Pois bem, segunda feira, por volta das cinco da tarde, lá estava eu no vestiário da academia, dopada de serotonina e com o corpo super quente. E não é por necessidade de pertencimento e para não parecer a gringa idiota – lembrem-se que eu já superei esses dois problemas – que volto para casa todos os dias com a roupa da academia (short, top e camiseta) e o casacão por cima. É uma questão prática – para vestir a roupa de novo eu teria que tomar um banho, e eu já expliquei porque não o faço. Além disso, é só uma corridinha da academia para o ônibus, o qual me deixa precisamente em frente do meu dormitório.


Voltemos à segunda feira. Estava eu no ponto, ainda quente e sem perceber os quatro graus que faziam do lado de fora, quando lembrei que, no dia seguinte, terça feira, era o “pancake day”. Sem maiores explicações, dia de comer panqueca até morrer; e eu precisava comprar leite, ovos e alguma porcaria para combinar. E foi aí que a sucessão de escolhas muito mal feitas começou. Eu poderia ter ido no mercadinho da universidade, mas lá é caro. Eu poderia ter ido no mercadinho do dormitório, mas lá não ia ter sorvete, eu poderia ter ido a um supermercado no caminho entre a universidade e o dormitório, mas a serotonina é uma coisa perigosa. Ela faz você pensar que quatro graus são 12, que quatro horas sem comer não deixam você fraco e que um passeio até um supermercado que você não conhece, não sabe bem onde fica, mas que todo mundo diz que é o melhor da cidade, pode ser uma coisa boa para se fazer numa segunda feira à noite. Ok, deixo o 95 passar e pego o número 1, o qual, segundo haviam me informado, deveria passar direto pelo meu dormitório e parar no ponto final uns dez minutos depois, exatamente em frente ao ASDA, o maior e mais barato hipermercado de Leeds.


Quarenta minutos depois lá estava eu. Vocês estão anotando, né: short, quatro graus, quatro horas sem comer (que a essa altura já eram quase cinco horas sem comer). Saí do ônibus e comecei a sentir a onda da serotonina passar. Tudo bem, tudo bem, o supermercado é quentinho. E que supermercado! Os meus colegas estavam certos. Um hipermercado no verdadeiro sentido da palavra, tipo o Wall Mart, só que melhor. Cestinha, certo, porque eu só precisava de umas coisinhas para as panquecas? Não, carrinho. Ou vocês esqueceram que é de mim que estou falando? Eu estou sempre precisando de umas coisinhas. Sempre. Quarenta minutos depois (cinco horas e vinte minutos sem comer e com uma boa quantidade de água na boca) (fazer compras com fome é uma das piores besteiras que se pode cometer), estava eu com quatro sacolas pesadíssimas, encarando a saída. Ok, perguntar onde pára o ônibus ou aproveitar a banquinha para comprar um cigarro? Segunda opção, os meus tinham acabado e eu estava com miséria de pagar 40 centavos a mais para comprar na máquina do dormitório. E fome dá vontade de fumar. Quase 20 reais mais pobre, fui-me para o ponto, de acordo com as direções dadas por um senhor que também comprava cigarros.


Ponto de ônibus, quatro graus, cinco horas e meia sem comer: hipotermia, pernas dormentes, dedos roxos. Ainda assim dava risadas, afinal eu estou “ok” com as pequenas burradas que cometo por aqui, certo? E dali há dez minutos no máximo estaria tomando um banho escaldante e, quentinha, prepararia uma das delícias que havia comprado. Enquanto pensava no meu carbonnara, três adolescentes fumavam maconha do meu lado, dentro da cabine semi-aberta onde se espera o ônibus. Ficar quieta na minha ou pedir o isqueiro emprestado para fumar um cigarrinho e esquentar um pouco? Percebam que o fato de que eu não estava com o meu isqueiro já era um sinal divino de que não é uma boa idéia fumar quando se tem pressão baixa, está-se há quase seis horas sem comer e malhou-se nesse meio tempo. Mas eu estava me sentindo burra, eu acho, e acendi o maldito cigarro (o que aliás me rendeu uma mini conversa com os adolescentes chapados digna de ser explorada em uma outra hora).


Um, dois, três tragos – nem um pouco mais quente, mas muito mais tonta.


Ya, you getting on the number one?


Yeah, it stops here, right?


Down there! Run, run!


Great! Apaguei o cigarro, respirei fundo e fui-me correndo ladeira abaixo. O maldito ônibus ainda ficou parado cinco minutos antes de finalmente tomar seu rumo. Percebam que, tivesse terminado aí, ainda estaríamos no nível do engraçadinho. As pessoas nem ririam da minha história – e vocês ficariam fulos da vida de terem largado seus preciosos life-changing-best-sellers para ler uma crônica sobre um dia de merda que nem foi tão engraçado assim. Começo a temer os tomates no fim do espetáculo. But then again...


O caminho de volta consistia em uma volta na praça onde fica o ASDA e uma linha reta de volta ao centro da cidade, passando pela entrada do meu dormitório. Esse ônibus, assim como todos os outros, à exceção do 95, não entra no meu dormitório, o qual, como já expliquei, fica na beira de uma highway e é grande pra caralho. Highways, como vocês devem imaginar, são sempre muito repetitivas, e a arquitetura britânica, digamos assim, não é lá o supra-sumo da criatividade. Agora vem a parte crucial: pedir ao motorista para parar no ponto mais próximo da entrada do Bodington Hall ou confiar no meu traseiro semi-congelado e semi-tonto para dar o sinal na parada certa? E foi aí que o meu sentimento de pertencimento enganou a minha recém adquirida humildade para perguntar e pedir ajuda, e eu fiquei com a segunda opção.


Foram dois pontos de erro, e uma caminhada de mais ou menos dois quilômetros. De short, num frio de quatro graus, com a mochila pesada nas costas, sem a serotonina, tendo feito a última refeição umas seis horas antes. Isso sem contar que era uma highway , cercada por intermináveis e assustadores campos para a prática de esportes (que no frio nada mais são do que campos não iluminados).


Eu poderia ter queimado a carta “mamãe, socorro, preciso chorar no telefone” nesse instante, mas acho que estou guardando-a para o dia em que perder meu passaporte no leste europeu. Ao invés disso, fui andando devagar, tentando rir da sucessão de idéias bestialmente idiotas que havia tido naquelas últimas horas. O termo “asneira galopante”, cunhado pelo querido mestre Paulo Henriques Britto, veio-me à cabeça inúmeras vezes. Foi quando senti pela primeira vez uma das malditas sacolas chocar-se contra a minha semi-viva perna esquerda. Não deu pra perceber o tamanho do esbarrão, dado às condições cadavéricas da tal perna. Não parei para descansar ou mover as sacolas de mão, aparentemente a única idéia razoavelmente acertada da noite, uma vez que fazê-lo significaria não conseguir sair do lugar de novo. Já não sentia mais nada, o que não deixava de ser uma boa coisa. Durante todo o caminho desejei que alguém passasse por mim e me ajudasse, mas o único ciclista que se deparou com o que para ele deve ter parecido um fantasma que havia acabado de receber o décimo terceiro, não fez nem menção de ajudar.


Parei na porta do meu dormitório por volta das sete horas, larguei as sacolas, mexi levemente os dedos da mão – iam sobreviver. Tateei pela chave com certa dificuldade e, ao abaixar para pegar as sacolas novamente, percebi que estavam melecadas de um líquido avermelhado. “Porra, vazou a carne”, pensei. Não exatamente. Quer dizer, figurativamente falando, vazou a carne — a da minha perna esquerda. A embalagem das batatinhas pré-cozidas ao molho de manteiga e ervas, para ser mais precisa, rasgou a carne da minha perna esquerda. Do terço mais baixo da coxa, passando pelo joelho, até o meio da batata (a da perna), somam-se cinco hematomas e um corte bem feio. Uma obra de arte, digo, de estupidez.


Tomei o melhor banho da minha vida e devorei com toda a voracidade que possuo as ignóbeis batatinhas.


Na terça-feira, com preguiça de esperar o 95, peguei novamente o número 1 e, enquanto caminhava debaixo de uma chuva fina e gelada, percebi que uma garota encontrava-se quase na mesma situação que eu no dia anterior (ela não estava de short, mas tinha o agravante da chuva).


Need a hand with that?


God, yes!


A Rosie é de Londres e faz Latin American Studies na universidade; aprende espanhol e português e veio aqui me agradecer no dia seguinte. E é aí que minha história fica clichê e piegas de novo.