"words are poisoned darts of pleasure" FF

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Mudança

Gosto de pensar que as coisas nos sentem assim como nós sentimos as coisas. Eu explico. As pessoas mais sensíveis, quando entram em um lugar novo ou estão perto de um objeto pela primeira vez, sentem uma vibração positiva ou negativa emanando dessas coisas. Pra mim, colocar nome e tratar com afeição celular, carro, apartamento e notebook é uma brincadeira que esquenta — no sentido de fazer mais feliz — a vida. E antes que alguém pense em dizer “coitada, não deve ter ninguém”, aviso logo que família, amigos e namorado vão muito bem, obrigada. Vejam bem, três anos aqui e nenhuma barata; isso tem que significar algo de bom.

Olhando em volta, vejo hoje alguns pregos a mais, o branco já não mais imaculado das paredes, a mancha perfeitamente redonda demarcando o lugar onde ficava o relógio que nunca andou. Parece piada, mas o relógio da cozinha nunca funcionou. Parando pra pensar, o contorno na parede é tão eficaz quanto o relógio em si. Talvez ele tivesse me sentido naquela tarde, há três anos, quando o retirei da prateleira da loja de departamentos, ainda muito antes de me mudar, sob protestos da minha mãe, que dizia ainda não ser hora de comprar coisas pra minha casa. Talvez naquele momento ele tivesse sentido a minha necessidade de brincar com o tempo, o meu desgosto por linearidades, pelo menos no papel. Muito provavelmente ele já havia sentido que os três anos que estavam por vir contariam por muitos. E ainda assim passariam tão, tão depressa.

E ainda que outras demãos de tinta cubram de um branco perfeito novamente as paredes, que a massa corrida tampe os buracos que fiz e que consertem-se as portas do armário e o tampo do baú, a troca já está feita. Eu já senti a casa e a casa já me sentiu. E nem o chão gelado e a sala assustadoramente vazia esfriam o ambiente enquanto escrevo.

Quanto ao relógio preguiçoso, sobreviveu por um descuido, ou por sentir que vou sempre precisar de algo (alguém) para descompassar o meu tempo.

— Ué, amor, cadê o relógio? Tá quebrado, eu ia jogar fora.

— Putz, empacotaram e eu nem vi.

domingo, 11 de novembro de 2007

Projeção

Vai estar chorando, isso é certo. Rindo e chorando, como ao final de um filme da Sofia Copolla. Como em uma caminhada displicente em um dia de sol brando, daqueles em que quando se está à sombra, os pelos da nuca se arrepiam e, quando ao sol, a alma torna a esquentar; e então as idéias se alinham como num eclipse, as claras defronte das escuras, e nada se vê além de um horizonte de águas transparentes. E isso porque perceberá, ao apertar finalmente o play no setlist cuidadosamente preparado para aquele instante, que não por acaso agridoce é uma palavra só, inteira e indissolúvel, e que não por acaso o último ano havia sido o pior e o melhor de sua vida. E então entenderá como é possível suportar tamanha tristeza e tamanha felicidade ao mesmo tempo.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Teoria do tempo

Jogo o tempo
na água
E ele
nada.

Marina Colassanri


Vocês podem achar dificílimo de conceber, mas algumas tribos indígenas não têm a mesma noção de linearidade do tempo – passado, presente e futuro – que essa mais popular em grande parte do mundo. Para essa questão, a sofística apresenta um argumento irrefutável: a verdade está nos olhos de quem vê. A noção de mundo de uma comunidade advém dos conceitos que ela criou para nomear as coisas nesse mundo. De maneira diferente, mas variando sobre o mesmo tema, temos o que acontece quando sonhamos. Um minuto no “mundo acordado” pode corresponder à horas, dias, quiçá anos, no mundo onírico. E se pensarmos que realmente vemos nossa vida passar em um segundo antes de morrermos, a inquietação é ainda maior. Maluquice? Sim, eu sei, sabe como é, muito tempo livre.

Mas retomando. O que eu considero mais incrível (e por conseqüência o que mais me intriga) sobre essa coisa de tempo (coisa, sim. Ou você vai me explicar o que é o tempo? Alguém? Não? Foi o que eu pensei.) é a idéia de que nenhuma coisa é a mesma coisa que era um milionésimo de segundo atrás, de que o presente é incansavelmente substituído pelo futuro e vai virando passado, nesse ritmo frenético e inquestionável, sem que se possa senti-lo, pegá-lo, vê-lo, idealizá-lo. Gostaria inclusive que me explicassem o que diabos significa essa coisa de viver o agora, viver o presente, como é mesmo que se diz? Ah, sim carpe diem. O presente é algo impossível, impalpável e inatingível se pensarmos que o tempo não pára nunca. É uma impossibilidade. Vocês estão sempre no meio do caminho, entre uma coisa e outra. Transformam-se em passado e futuro ao mesmo tempo. Com um pouco de bom senso, perceberão que a própria noção de realidade fica um tanto arredia quando se pensa assim. Se é real aquilo que existe neste exato instante, então podem dizer adeus ao real. Ou não é verdade que a história, a memória e a imaginação distorcem a noção de realidade? E eu nem mencionei tarôs, bolas de cristal e numerologia. Aliás, o quão imbecil lhes parece perder tempo tentando decifrar o tempo? Bastante? Foi o que eu pensei. Um instante decide o próximo instante, simples assim. Logo, se você lê de maneira cronológica – uma letra após a outra — então este texto nunca irá existir inteiramente. O que pode vir a calhar, acho que posso estar deixando escapar um pouco demais. Enfim, não reparem na obsessão, nem na prolixidade, mas vocês não imagem o tédio que é o infinito.

Vejam bem, reparem no ponteiro dos segundos de um relógio. Antes que você consiga terminar de ler esta palavra ele já esquivou-se sorrateiramente para a próxima casa. E quanto tempo cabe em um segundo? Sim, porque o segundo marcado pelos relógios nada mais é do que uma convenção. E quem quisesse me confrontar diria que então vivemos constantemente no presente. Decerto, mas um instante não dura pra sempre. Digamos que o presente vá sendo substituído por outro presente, e por outro, e por outro. Pronto, estamos de volta a minha teoria. Um instante após o outro, precisa repetir? Percebo que estou começando a aborrecer. Entendam, por favor, que esta condição de coisa impalpável muito me chateia.

Um exemplo, tudo bem. Um exemplo de que o tempo pode ser experienciado de muitos outros jeitos que não esse que todos vocês conhecem; que ele pode ser distorcido, distendido ou comprimido quando se olha para dentro. Ou para muito longe.

Agora há pouco, uma cena que se deu em não mais do que vinte segundos (desses contados pelos ponteiros do relógio), durou, para uma das pessoas que a compunha, alguns meses. Do sofá preto de couro em que se achava sentada, chorando e enxugando as lágrimas que faziam arder os poros abertos em seu rosto, ela via, em pé a sua frente o homem que amava e que estava prestes a deixá-la. Fechou os olhos por impulso, como se não quisesse mais acumular lembranças dele. Olhá-lo significava que no instante seguinte teria mais uma memória. E ela estava cheia delas. Mas as alternativas desembocavam no mesmo lugar. Nele. De olhos abertos ou fechados, ele estava ali, senão parado à sua frente; na faculdade, em um banco qualquer. Senão encarando os quatro cantos de sua sala; ao seu lado, com os contornos iluminados pela tela do cinema, do lado esquerdo de sua cama, ao cair da tarde, em um ponto de ônibus, selando com um beijo mais uma reconciliação.

Apertou ainda com mais força os olhos, na esperança de comprimir também essas imagens, até que perdeu as forças. Relaxou os músculos e abriu os olhos outra vez. Finalmente de volta ao instante daquela primeira cena, percebeu que ele finalmente se movia, caminhando em sua direção. Lembrou-se de um dos diálogos finais de Romeo e Julieta e foi repassando-o e traduzindo-o simultaneamente. Eyes look your last. Olhos, olhem uma última vez. Arms take your last embrace. Braços, abracem uma última vez. And lips, O you the doors to breath, seal with a righteous kiss this dateless bargain... E lábios, vocês, as portas para a vida, selem com um beijo legítimo este contrato esterno...

Não o beijou, mas achava talvez fosse melhor assim. As coisas imaginadas carregam um tom de doce tristeza. E, talvez, daqui a muitos anos, como acontece quando depois de velhos inventamos uma memória de infância, ela se lembre de tal beijo. E quem sou eu para questionar a veracidade de uma lembrança? Por hora, ela estava, sim, feliz. Feliz por ter conseguido engolir e digerir toda aquela história. Feliz porque a dor, essa que fazia arder o rosto e apertava as entranhas, que lhe tirava o ar, era também prova de sua humanidade, prova de que estava viva. A dor havia preenchido um vazio. Vivia; e era só o que importava.

***

E agora vocês me perguntam o que diabos eu estou tentando provar com isso tudo. Paciência, paciência.

Não muito tempo depois, essa mesma moça, sentada com os pés apoiados na mesa da varanda, observava no fim da tarde um fenômeno que muito a encantava. No horizonte, como mágica, sempre no mesmo horário, em todos os dias que fizesse sol, ali — e só ali — o horizonte se dividia nas cores da bandeira de seu estado. Azul, branco e rosa. Levantou-se e andou em direção ao jardim, não iria desperdiçar os últimos raios de sol sentada à sombra. Colocou os óculos escuros e deitou-se na beira da piscina, com a mão esquerda a fazer redemoinhos na água cristalina. Um pedaço do sol já se escondia detrás do telhado, de modo que aquele se transformara em seu pôr-do-sol particular. Apenas para ela, deitada naquele local, naquele ângulo, por detrás daquele telhado. Confundia-se com o que era mais azul: a piscina, seu vestido ou o céu. Preferia imaginar que se misturavam. Distraiu-se por um instante, lamentando não ser possível instalar uma câmera de cinema por detrás das lentes de seus óculos, ou quem sabe sua máquina fotográfica. Pensou em correr para buscá-la, mas deteve-se. E foi então que entendeu a impossibilidade de que eu falava mais cedo. Não era nem mais a questão de que nenhuma coisa é a mesma coisa que era um milionésimo de segundo atrás. Mas sim de que ela nunca mais sentiria o que sentiu no instante em que abriu os olhos ali na beira da piscina. A felicidade é tão indecifrável quanto o tempo. Era o que eu estava tentando dizer desde o começo. E como me conforta não ser o único indecifrável.

É preciso delicadeza, e uma boa dose de coragem, para render-se — ao tempo e à felicidade. Não se persegue aquilo que não se pode definir. E este é um assunto resolvido, eu decidi. Não se define tempo, muito menos felicidade. Não se vê, não se pega, não se escreve, nem se descreve.

Vive-se e ponto, nesse vácuo inconcebível que vocês chamam de presente.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Uma história e duas anotações

De trás pra frente, então.
Vale sincornizar o último post com Dark of the matinée, do Franz.
O post de hoje é uma introdução ao próximo post.

Descida

(...) Para digerir a felicidade material, como a artificial, é preciso, antes de tudo, coragem para engoli-la.

Charles Baudelaire

A taça de vinho denunciava o descompromisso com a vida material naquela noite cinza de outubro. Estava finalmente cansada de se convencer de que tudo estava onde deveria estar – a cicatriz no lábio inferior não a deixaria esquecer. Se era verdadeira a dor ou se precisava deixar-se desmoronar para legitimizar sua humanidade, já não importava. Ia sangrar, era preciso. De concreto apenas a embriaguez, o rock da moda e a folha em branco a encará-la.

A folha em branco a humilhá-la.

Vai gabaritar a prova de amanhã, mas acaso vive?

Adormeceu resguardada pela dormência que resulta de um bom camenère. Já fazia alguns dias que apenas adormecia quando deixava de sentir, de pensar demais. Gostaria de sonhar, de ser outra durante a noite, mas o sono embalado pelo álcool trazia apenas mais escuridão; e mal estar na manhã seguinte.

Abriu os olhos e percebeu que havia deixado a persiana aberta e o sol lhe cortava a retina.

Caralho.

Tudo o que não precisava era de claridade para interromper a seqüência de dias chuvosos que vinha embalando aquela semana.

A prova, a merda da prova.

Precisava de café, um litro de café. Sabia que precisava comer, mas o vazio físico combinava com o sentimental. Levantou, colocou a água para ferver, a garrafa de vinho jogada ao lado do lixo, o cheiro de álcool fermentado só fazia piorar o enjôo.

Puta que pariu, que vontade de vomitar. Vontade de vomitar o vazio, virar do avesso, quem sabe. Começar tudo de novo.

Sabia que ao decidir abraçar os sentimentos estava seguindo por uma estrada ainda não percorrida, não fazia a menor idéia de quais feridas estava abrindo e, pior, do quão extensas elas eram. Mas como queria cutucá-las, fazê-las sangrar e infeccioná-las. Havia metido na cabeça que não seria feliz sem que antes conhecesse a fundo a solidão, o sofrimento. Todos sofriam, todos reclamavam, tomavam remédios, iam ao psicólogo, ficavam destruídos a cada término de namoro.

Eu sou maluca. A prova, porra, a prova.

Virou o café em um gole, sentiu a pele descolar do céu da boca, sempre suportara bem a dor. Desconfiava que gostasse. Sabia que gostava, na verdade.

Vestiu-se, enfiou as coisas na mochila, os óculos escuros na cara e saiu. Sempre descia de escada, mas dessa vez pegou o elevador.

sábado, 20 de outubro de 2007

Matinê


Of course it is happening inside your head, Harry; but why on earth should that mean that it is not real?

J. K. Rowling

“Mon coeur est plein — je veux pleurer!” Uma voz maçante despertou-a de mais um diálogo inventado. Já achava tão comum passar o tempo inventando memórias possíveis que às vezes se perguntava se as outras pessoas o faziam também.

A professora parecia ter quase sessenta anos. A julgar pelos cabelos — negros e escorridos até os ombros — e pelos olhos, ainda penetrantes, devia ter feito sucesso quando moça. Isso antes dos três filhos, do falecido marido e das sessões de análise, claro. Naquele momento, a declamar com um ar presunçoso aquela melosa epígrafe, metida em uma saia que sabe deus porque foi fabricada em tamanho cinquenta, era o retrato de uma decadência que muito a incomodava.

Estava cansada de ouvir falar de pós-modernidade por intermédio de velhos saudosos do romantismo, cansada de gabaritar provas de teoria, de viver no abismo entre pensar e sentir. Queria viver tudo aquilo. E ao escorregar na cadeira para distrair-se novamente da aula sentiu sua bolsa tremer. “find me and follow me”, dizia a mensagem. Colocou a mochila nas costas e saiu.

Um trago, dois, três. Tinha suas dúvidas se ele estava falando sério. Sentiu um puxão no braço, uma mão deslizando pelo cós de sua calça. Ele não era de brincadeiras.

— Vem, me segue.

— Fugir disso daqui?

— Pode apostar.

Andavam apressados pelos corredores, rindo como se tivessem quinze anos outra vez. Não importava se eram quase estranhos um para o outro, muito menos se aquilo não fazia o menor sentido. Fazer sentido, inclusive, era um conceito do qual ela tentava fugir há mais de dois anos.

— Achei que você nunca ia perceber.

— O quê?

— Que eu faço de tudo pra esbarrar com você todos os dias.

— Me deixa achar que foi tudo coincidência.

— Pode ser.

— Pra onde , então?

— Pra longe daqui, por enquanto. Você precisa de um pouco de caos.

— Caos? Você acha que eu sou certinha?

— Acho que você acha que não é certinha.

Sentaram no banco do ônibus em silêncio e ela encostou o queixo em seu ombro, observando enquanto seu perfil, emoldurado pela janelinha, ganhava novos panos de fundo a cada curva. Não falavam nem riam mais. E enquanto o silêncio ditava o ritmo daquela pequena viagem ela pensava em todos os outros relacionamentos e paixões que vivera até então — eram muitos, apesar da pouca idade. Sentia-se estranhamente confortável ao lado dele. Sabia que estava diante de um momento único. Todos devemos aprender a reconhecer esses instantes — aqueles em que, em um milésimo de segundo, resolvemos se vamos nos entregar àquela situação ou não, se vamos pular ou desistir. E ela não gostava de perder o controle de nada — do horário, dos estudos, da casa.

Escondidas por detrás da vida independente e aparentemente desregrada que levava estavam várias amarras que a puxavam de volta à superfície sempre que a situação pedia um pouco mais de loucura, de desprendimento. Na verdade, vivia apaixonada pela imagem que os outros faziam dela, — responsável, centrada e bem resolvida — mas nunca teve certeza de que realmente queria ser aquilo tudo. O era. E era muito fácil. O que não significava que fosse caxias, quieta e excessivamente estudiosa, longe disso. Odiava pessoas comuns. Sabia muito bem o que não queria ser — uma mulher normal, com interesses normais e uma família normal. Isso não seria jamais. Mas isso também era comum; e não a tornava diferente do bolo. Muitas mulheres eram inteligentes, interessantes e libertárias. Faltava-lhe algo. Talvez concordasse com a maldita epígrafe, sentia que sua vida estava preenchida, mas isso não a fazia necessariamente feliz. Era como um balão prestes a explodir, cheia de nada.

Foi imersa nessas reflexões e tomada por uma vontade de não ser mais ela mesma por inteiro, de dividir-se, que ela se deixou levar, como sempre quisera, mas nunca tivera coragem de fazer.

— Você me acha estranha?

— Como assim?

— Estranha, maluca?

— Não, acho você diferente das outras mulheres. Diferente de um jeito bom.

— Eu odeio pessoas comuns.

— Eu também. E você nunca seria comum. — disse, desviando o olhar da rua e dirigindo-o para ela. — Do que você gosta?

Ela sorriu, pensou por alguns instantes e respondeu:

— Disso. Não sou complicada, não faço nada que não me faça feliz.

— Então é fácil te fazer feliz.

O ônibus fez mais uma parada e ele se levantou, puxando-a consigo:

— Vem, chegamos.

Sussurro:

— Você é maluco.

— Vecê veio, não veio?

Ela deslizou os dedos por sua nuca, puxou o zíper de seu casaco mais para baixo, a respiração ofegante. Terminou de abrir o zíper.

— Olha pra mim.

— Estou olhando.

— Está olhando para o meu pé.

Segurou forte em sua nuca e puxou seu rosto na direção do dela.

— Meus olhos estão aqui.

***

“Mon coeur est plein — je veux pleurer!”

— Então, gente, quem sabe francês — perguntou irritada a professora. — Vocês estão comigo?

Como quem acorda de um sonho, ainda um tanto zonza, entendeu o que se passara. Não iria mais explodir, não precisava mais chorar. Tirou o celular da mochila, os dedos ansiosos, escreveu “find me and follow me”. Colocou a mochila nas costas e saiu. Um trago, dois, três. Tinha suas dúvidas se ele iria entender. Sentiu um puxão no braço, uma mão deslizando pelo cós de sua calça.

— Que foi?

— Vem, vamos embora daqui.

— Como assim, pra onde?

— Confia em mim, eu sei. — disse, puxando-o pelo corredor. — Eu tenho muito o que aprender com você.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Receita para me lerem

Um blog. Era um desejo antigo. Enfim, ei-lo.

O primeiro texto não é meu, mas repousa ali na estante junto àqueles que eu gostaria de ter escrito. A “Receita para me lerem” é do Lobo Antunes, mas se aplica ipsis litteris, aos meus textos. Amanhã faço meu debut.

Enjoy!


"Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que os meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma
parece-me
de abordar os romences que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença (...)

A verdadeira aventura que proponho é aquela que o narrador e o leitor fazem em conjunto ao negrume do inconsciente, à raiz da natureza humana. Quem não entender isto aperceber-se-á apenas dos aspectos mais parcelares e menos importantes dos livros: o país, a relação homem-mulher, o problema da identidade e da procura dela, África e a brutalidade da exploração colonial, etc., temas se calhar muito importantes do ponto de vista político, ou social, ou antropológico, mas que nada têm a ver com o meu trabalho.
(...)

É necessário que a confiança nos valores comuns se dissolva página a página, que a nossa enganosa coesão interior vá perdendo gradualmente o sentido que não possui e todavia lhe dávamos, para que outra ordem nasça desse choque, pode ser que amargo mas inevitável. Gostaria que os meus romances não estivessem nas livrarias ao lado dos outros, mas afastados e numa caixa hermética, para não contagiarem as narrativas alheias ou os leitores desprevenidos: é que sai caro buscar uma mentira e encontrar uma verdade. Caminhem pelas minhas páginas como num sonho porque é nesse sonho, nas suas claridades e nas suas sombras, que se irão achando os significados do romance, numa intensidade que corresponderá aos vossos instintos de claridade e às sombras da vossa pré-história. E, uma vez acabada a viagem
e fechado o livro
convalesça."

Antônio Lobo Antunes - Receita para me lerem