Jogo o tempo
na água
E ele
nada.
Marina Colassanri
Vocês podem achar dificílimo de conceber, mas algumas tribos indígenas não têm a mesma noção de linearidade do tempo – passado, presente e futuro – que essa mais popular em grande parte do mundo. Para essa questão, a sofística apresenta um argumento irrefutável: a verdade está nos olhos de quem vê. A noção de mundo de uma comunidade advém dos conceitos que ela criou para nomear as coisas nesse mundo. De maneira diferente, mas variando sobre o mesmo tema, temos o que acontece quando sonhamos. Um minuto no “mundo acordado” pode corresponder à horas, dias, quiçá anos, no mundo onírico. E se pensarmos que realmente vemos nossa vida passar em um segundo antes de morrermos, a inquietação é ainda maior. Maluquice? Sim, eu sei, sabe como é, muito tempo livre.
Mas retomando. O que eu considero mais incrível (e por conseqüência o que mais me intriga) sobre essa coisa de tempo (coisa, sim. Ou você vai me explicar o que é o tempo? Alguém? Não? Foi o que eu pensei.) é a idéia de que nenhuma coisa é a mesma coisa que era um milionésimo de segundo atrás, de que o presente é incansavelmente substituído pelo futuro e vai virando passado, nesse ritmo frenético e inquestionável, sem que se possa senti-lo, pegá-lo, vê-lo, idealizá-lo. Gostaria inclusive que me explicassem o que diabos significa essa coisa de viver o agora, viver o presente, como é mesmo que se diz? Ah, sim carpe diem. O presente é algo impossível, impalpável e inatingível se pensarmos que o tempo não pára nunca. É uma impossibilidade. Vocês estão sempre no meio do caminho, entre uma coisa e outra. Transformam-se em passado e futuro ao mesmo tempo. Com um pouco de bom senso, perceberão que a própria noção de realidade fica um tanto arredia quando se pensa assim. Se é real aquilo que existe neste exato instante, então podem dizer adeus ao real. Ou não é verdade que a história, a memória e a imaginação distorcem a noção de realidade? E eu nem mencionei tarôs, bolas de cristal e numerologia. Aliás, o quão imbecil lhes parece perder tempo tentando decifrar o tempo? Bastante? Foi o que eu pensei. Um instante decide o próximo instante, simples assim. Logo, se você lê de maneira cronológica – uma letra após a outra — então este texto nunca irá existir inteiramente. O que pode vir a calhar, acho que posso estar deixando escapar um pouco demais. Enfim, não reparem na obsessão, nem na prolixidade, mas vocês não imagem o tédio que é o infinito.
Vejam bem, reparem no ponteiro dos segundos de um relógio. Antes que você consiga terminar de ler esta palavra ele já esquivou-se sorrateiramente para a próxima casa. E quanto tempo cabe em um segundo? Sim, porque o segundo marcado pelos relógios nada mais é do que uma convenção. E quem quisesse me confrontar diria que então vivemos constantemente no presente. Decerto, mas um instante não dura pra sempre. Digamos que o presente vá sendo substituído por outro presente, e por outro, e por outro. Pronto, estamos de volta a minha teoria. Um instante após o outro, precisa repetir? Percebo que estou começando a aborrecer. Entendam, por favor, que esta condição de coisa impalpável muito me chateia.
Um exemplo, tudo bem. Um exemplo de que o tempo pode ser experienciado de muitos outros jeitos que não esse que todos vocês conhecem; que ele pode ser distorcido, distendido ou comprimido quando se olha para dentro. Ou para muito longe.
Agora há pouco, uma cena que se deu em não mais do que vinte segundos (desses contados pelos ponteiros do relógio), durou, para uma das pessoas que a compunha, alguns meses. Do sofá preto de couro em que se achava sentada, chorando e enxugando as lágrimas que faziam arder os poros abertos em seu rosto, ela via, em pé a sua frente o homem que amava e que estava prestes a deixá-la. Fechou os olhos por impulso, como se não quisesse mais acumular lembranças dele. Olhá-lo significava que no instante seguinte teria mais uma memória. E ela estava cheia delas. Mas as alternativas desembocavam no mesmo lugar. Nele. De olhos abertos ou fechados, ele estava ali, senão parado à sua frente; na faculdade, em um banco qualquer. Senão encarando os quatro cantos de sua sala; ao seu lado, com os contornos iluminados pela tela do cinema, do lado esquerdo de sua cama, ao cair da tarde, em um ponto de ônibus, selando com um beijo mais uma reconciliação.
Apertou ainda com mais força os olhos, na esperança de comprimir também essas imagens, até que perdeu as forças. Relaxou os músculos e abriu os olhos outra vez. Finalmente de volta ao instante daquela primeira cena, percebeu que ele finalmente se movia, caminhando em sua direção. Lembrou-se de um dos diálogos finais de Romeo e Julieta e foi repassando-o e traduzindo-o simultaneamente. Eyes look your last. Olhos, olhem uma última vez. Arms take your last embrace. Braços, abracem uma última vez. And lips, O you the doors to breath, seal with a righteous kiss this dateless bargain... E lábios, vocês, as portas para a vida, selem com um beijo legítimo este contrato esterno...
Não o beijou, mas achava talvez fosse melhor assim. As coisas imaginadas carregam um tom de doce tristeza. E, talvez, daqui a muitos anos, como acontece quando depois de velhos inventamos uma memória de infância, ela se lembre de tal beijo. E quem sou eu para questionar a veracidade de uma lembrança? Por hora, ela estava, sim, feliz. Feliz por ter conseguido engolir e digerir toda aquela história. Feliz porque a dor, essa que fazia arder o rosto e apertava as entranhas, que lhe tirava o ar, era também prova de sua humanidade, prova de que estava viva. A dor havia preenchido um vazio. Vivia; e era só o que importava.
***
E agora vocês me perguntam o que diabos eu estou tentando provar com isso tudo. Paciência, paciência.
Não muito tempo depois, essa mesma moça, sentada com os pés apoiados na mesa da varanda, observava no fim da tarde um fenômeno que muito a encantava. No horizonte, como mágica, sempre no mesmo horário, em todos os dias que fizesse sol, ali — e só ali — o horizonte se dividia nas cores da bandeira de seu estado. Azul, branco e rosa. Levantou-se e andou em direção ao jardim, não iria desperdiçar os últimos raios de sol sentada à sombra. Colocou os óculos escuros e deitou-se na beira da piscina, com a mão esquerda a fazer redemoinhos na água cristalina. Um pedaço do sol já se escondia detrás do telhado, de modo que aquele se transformara em seu pôr-do-sol particular. Apenas para ela, deitada naquele local, naquele ângulo, por detrás daquele telhado. Confundia-se com o que era mais azul: a piscina, seu vestido ou o céu. Preferia imaginar que se misturavam. Distraiu-se por um instante, lamentando não ser possível instalar uma câmera de cinema por detrás das lentes de seus óculos, ou quem sabe sua máquina fotográfica. Pensou em correr para buscá-la, mas deteve-se. E foi então que entendeu a impossibilidade de que eu falava mais cedo. Não era nem mais a questão de que nenhuma coisa é a mesma coisa que era um milionésimo de segundo atrás. Mas sim de que ela nunca mais sentiria o que sentiu no instante em que abriu os olhos ali na beira da piscina. A felicidade é tão indecifrável quanto o tempo. Era o que eu estava tentando dizer desde o começo. E como me conforta não ser o único indecifrável.
É preciso delicadeza, e uma boa dose de coragem, para render-se — ao tempo e à felicidade. Não se persegue aquilo que não se pode definir. E este é um assunto resolvido, eu decidi. Não se define tempo, muito menos felicidade. Não se vê, não se pega, não se escreve, nem se descreve.
Vive-se e ponto, nesse vácuo inconcebível que vocês chamam de presente.