Of course it is happening inside your head, Harry; but why on earth should that mean that it is not real?
J. K. Rowling
“Mon coeur est plein — je veux pleurer!” Uma voz maçante despertou-a de mais um diálogo inventado. Já achava tão comum passar o tempo inventando memórias possíveis que às vezes se perguntava se as outras pessoas o faziam também.
A professora parecia ter quase sessenta anos. A julgar pelos cabelos — negros e escorridos até os ombros — e pelos olhos, ainda penetrantes, devia ter feito sucesso quando moça. Isso antes dos três filhos, do falecido marido e das sessões de análise, claro. Naquele momento, a declamar com um ar presunçoso aquela melosa epígrafe, metida em uma saia que sabe deus porque foi fabricada em tamanho cinquenta, era o retrato de uma decadência que muito a incomodava.
Estava cansada de ouvir falar de pós-modernidade por intermédio de velhos saudosos do romantismo, cansada de gabaritar provas de teoria, de viver no abismo entre pensar e sentir. Queria viver tudo aquilo. E ao escorregar na cadeira para distrair-se novamente da aula sentiu sua bolsa tremer. “find me and follow me”, dizia a mensagem. Colocou a mochila nas costas e saiu.
Um trago, dois, três. Tinha suas dúvidas se ele estava falando sério. Sentiu um puxão no braço, uma mão deslizando pelo cós de sua calça. Ele não era de brincadeiras.
— Vem, me segue.
— Fugir disso daqui?
— Pode apostar.
Andavam apressados pelos corredores, rindo como se tivessem quinze anos outra vez. Não importava se eram quase estranhos um para o outro, muito menos se aquilo não fazia o menor sentido. Fazer sentido, inclusive, era um conceito do qual ela tentava fugir há mais de dois anos.
— Achei que você nunca ia perceber.
— O quê?
— Que eu faço de tudo pra esbarrar com você todos os dias.
— Me deixa achar que foi tudo coincidência.
— Pode ser.
— Pra onde , então?
— Pra longe daqui, por enquanto. Você precisa de um pouco de caos.
— Caos? Você acha que eu sou certinha?
— Acho que você acha que não é certinha.
Sentaram no banco do ônibus em silêncio e ela encostou o queixo em seu ombro, observando enquanto seu perfil, emoldurado pela janelinha, ganhava novos panos de fundo a cada curva. Não falavam nem riam mais. E enquanto o silêncio ditava o ritmo daquela pequena viagem ela pensava em todos os outros relacionamentos e paixões que vivera até então — eram muitos, apesar da pouca idade. Sentia-se estranhamente confortável ao lado dele. Sabia que estava diante de um momento único. Todos devemos aprender a reconhecer esses instantes — aqueles em que, em um milésimo de segundo, resolvemos se vamos nos entregar àquela situação ou não, se vamos pular ou desistir. E ela não gostava de perder o controle de nada — do horário, dos estudos, da casa.
Escondidas por detrás da vida independente e aparentemente desregrada que levava estavam várias amarras que a puxavam de volta à superfície sempre que a situação pedia um pouco mais de loucura, de desprendimento. Na verdade, vivia apaixonada pela imagem que os outros faziam dela, — responsável, centrada e bem resolvida — mas nunca teve certeza de que realmente queria ser aquilo tudo. O era. E era muito fácil. O que não significava que fosse caxias, quieta e excessivamente estudiosa, longe disso. Odiava pessoas comuns. Sabia muito bem o que não queria ser — uma mulher normal, com interesses normais e uma família normal. Isso não seria jamais. Mas isso também era comum; e não a tornava diferente do bolo. Muitas mulheres eram inteligentes, interessantes e libertárias. Faltava-lhe algo. Talvez concordasse com a maldita epígrafe, sentia que sua vida estava preenchida, mas isso não a fazia necessariamente feliz. Era como um balão prestes a explodir, cheia de nada.
Foi imersa nessas reflexões e tomada por uma vontade de não ser mais ela mesma por inteiro, de dividir-se, que ela se deixou levar, como sempre quisera, mas nunca tivera coragem de fazer.
— Você me acha estranha?
— Como assim?
— Estranha, maluca?
— Não, acho você diferente das outras mulheres. Diferente de um jeito bom.
— Eu odeio pessoas comuns.
— Eu também. E você nunca seria comum. — disse, desviando o olhar da rua e dirigindo-o para ela. — Do que você gosta?
Ela sorriu, pensou por alguns instantes e respondeu:
— Disso. Não sou complicada, não faço nada que não me faça feliz.
— Então é fácil te fazer feliz.
O ônibus fez mais uma parada e ele se levantou, puxando-a consigo:
— Vem, chegamos.
Sussurro:
— Você é maluco.
— Vecê veio, não veio?
Ela deslizou os dedos por sua nuca, puxou o zíper de seu casaco mais para baixo, a respiração ofegante. Terminou de abrir o zíper.
— Olha pra mim.
— Estou olhando.
— Está olhando para o meu pé.
Segurou forte em sua nuca e puxou seu rosto na direção do dela.
— Meus olhos estão aqui.
***
“Mon coeur est plein — je veux pleurer!”
— Então, gente, quem sabe francês — perguntou irritada a professora. — Vocês estão comigo?
Como quem acorda de um sonho, ainda um tanto zonza, entendeu o que se passara. Não iria mais explodir, não precisava mais chorar. Tirou o celular da mochila, os dedos ansiosos, escreveu “find me and follow me”. Colocou a mochila nas costas e saiu. Um trago, dois, três. Tinha suas dúvidas se ele iria entender. Sentiu um puxão no braço, uma mão deslizando pelo cós de sua calça.
— Que foi?
— Vem, vamos embora daqui.
— Como assim, pra onde?
— Confia em mim, eu sei. — disse, puxando-o pelo corredor. — Eu tenho muito o que aprender com você.
9 comentários:
Texto longo, li em dois dias!
Brincadeira!
Gostei, bacana e bem humorado! Voltarei aqui!
esse conto é lindo! e muito a sua cara!
amo ele! já falei, né... umas mil vezes!
mas é sempre bom falar de novo!
beijo, beiba!
a frase em francês logo chamou-me a atenção!
adoreiii! queria escrever tão bem assim.. :)
beijos xuxu
lu,
não conhecia nenhum dos seus textos, mas agora que já sei o caminho, vou entrar sempre!
adorei esse! quero mais!
beijos
Êêêêêê!!!
Te coloquei nos favoritos!! Amei demais...
e esse conto...uma delícia!
bjinhos
musica.
Querida, que texto perfeito!!!
Lindo! Vi, ouvi e senti cada detalhe.
Beijos
Ótimo! Enfim, algo que eu não acho estonteante, tava começando a ficar triste. Até pq vc num tá mais escrevendo aqui, ia ficar que nem Salinger ( filho da puta )
Ainda assim tá muito foda, tipo o Apanhador do lado de Seymour.
Vou continuar!
(y)
Muito envolvente!! Adorei seu conto!! :) bjsss
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